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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Crônica: Bússola

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Posso estar bastante enganado ao dizer isso, mas, geralmente, quando nos decepcionamos com uma pessoa, ou com uma circunstância específica, saímos à procura discreta de um breve consolo capaz de manter acesas em nós a chama da confiança e aquela consciência particular sem a qual não é possível enxergar a beleza das coisas. Decepcionar-se não é senão acreditar que algo poderia ser de determinado jeito e, no final das contas, constatar que o que recebemos como resposta não correspondeu àquilo em que acreditávamos com tanta convicção.

Por isso pode-se dizer que, em um episódio decepcionante, não há culpados nem vítimas: há esperança em excesso, apenas. Uma esperança tão grande que, por vezes, pode engolir a realidade dos fatos. O desejo de que algumas pessoas continuem a nos fazer bem, pelo resto de nossas vidas, pode ser conveniente para nós na medida em que é exatamente essa confiança e essa certeza que sustentam o edifício dos nossos relacionamentos. Não acreditar que os outros nos farão bem é minar as bases desse edifício, por si só tão frágil. Se os decepcionados são as vítimas por cultivarem uma confiança enorme e se os decepcionantes são os culpados por terem traído a confiança alheia, isto é somente uma questão de perspectiva.



Na minha primeira experiência de atendimento a um paciente, constatei que nossa efêmera existência é pontilhada de pequenas decepções que, aos poucos, à força, nos ajudam a enxergar o mundo de uma maneira diferente – e, acima de tudo, nos ajudam a perceber que não temos controle sobre nada relacionado à nossa interação com as outras pessoas. A única coisa que temos sobre os outros é uma ligeira sensação de influência, que pode variar – e varia, sempre – ao longo do tempo. É essa influência exercida por nós sobre os outros que confere aos nossos relacionamentos uma tênue sugestão de controle.

Na ficha de entrada do serviço de psicologia não havia muitos detalhes: apenas um nome, Fernanda, a informação de que ela era recém-divorciada e que tinha um filho pequeno de três anos de idade, diagnosticado precocemente como hiperativo por um psiquiatra. Achei que o caso poderia ser interessante e, de alguma maneira, achei que ele poderia ajudar a formar o início de minha experiência profissional.

Quando Fernanda se sentou à minha frente, a um convite meu, ela respirou pesadamente e disse, sem rodeios: "Não sei muito bem por que estou aqui. Sempre achei que eu poderia resolver os meus conflitos pessoais de maneira particular, sozinha, sem precisar da ajuda de ninguém. Sou uma pessoa forte e sempre dei conta das minhas dificuldades. Existem muitas pessoas aqui que provavelmente precisam mais da sua ajuda do que eu." E, então, começou a chorar.

Lá fora fazia um dia claro. Lembro de ter passado pelos jardins da universidade e de ter dito a mim mesmo algo sobre como as tulipas e as orquídeas estavam vistosas e sadias em seu desabrochar atravessado pelo orvalho da manhã. Agora, ali naquela sala, naquele momento, o filho de três anos de Fernanda brincava com uma coleção de carrinhos de metal que eu havia trazido para a sala do consultório, junto com um balde cheio de dinossauros coloridos. Tudo parecia natural e, até certo ponto, tranquilo. Mas aquela mulher bonita de 36 anos de idade estava chorando na minha frente porque, naquela manhã de sol, decidiu admitir que havia se decepcionado com alguém (por acaso, com seu ex-esposo), e que decepcionar-se era um fenômeno que ela nunca, ou quase nunca, tinha experimentado.

Quando cheguei em casa, no fim do dia, me pus a procurar alguns documentos acadêmicos nas gavetas bagunçadas da minha escrivaninha. De forma absolutamente inesperada (ou assim me pareceu), encontrei uma bússola em formato de chaveiro, com o metal da presilha um pouco desgastado pelo tempo. A bússola estava no fundo da última gaveta, ao lado de um controle remoto de televisão velho. Com a bússola, dentro de uma caixinha de plástico transparente, havia um bilhete escrito à mão, em caligrafia feminina: Seu chá de bússola diário. Não esqueça. A direção da Beleza, da Justiça e da Sinceridade é apenas uma, e ela, essa direção, está debaixo do nosso nariz. Inútil procurar em outro lugar. Beijo, Gabi.

Sou capaz de passar dezenas de minutos olhando para uma bússola sem me cansar. Naquele momento, esqueci completamente o que eu estava buscando, que documentos estava garimpando, e fiquei a revirar aquele pequeno e simbólico objeto nas mãos até perceber que o que eu estava procurando nas gavetas, desde o começo, não eram os documentos, mas a bússola. E me dei conta de que eu não falava com Gabriela há mais de três anos porque tínhamos, contrariando todas as nossas expectativas, nos decepcionado um com o outro.

* * *

Na nossa última sessão de avaliação psicológica (cujo paciente era, na verdade, o filho hiperativo de três anos), Fernanda me confidenciou que se sentia melhor. Nas últimas semanas, havia pensado sobre sua circunstância, sobre suas amarguras, e disse que o principal consolo que recebera viera da constatação de que as decepções, todas, se devem ao nosso esforço desmedido de construir uma imagem fantasiosa dos outros de acordo com os nossos interesses. De um modo geral, sua aparência estava bem melhor: havia um sorriso tímido no rosto, seus cabelos, volumosos e ondulados, estavam soltos, suas mãos não se remexiam nervosamente e pude perceber, com um certo alívio, uma atenção maternal sincera e afetuosa para com o pequeno garoto.

A excessiva atividade que o filho de Fernanda apresentava, diariamente, tanto no colégio quanto em casa e na rua, poderia ser vista como uma espécie de reação funcional à insegurança da mãe e à ausência do pai, que o havia ignorado desde o divórcio com a esposa. Era uma hipótese que valia a pena ser levada em consideração, mas os nossos encontros semanais acabaram quando o semestre letivo chegou ao fim. De qualquer modo, até hoje, tenho a sensação nítida de que aprendi mais com Fernanda e seu filho do que ambos aprenderam comigo.

Se o estofo de nossas decepções continua a ser um mistério, pelo menos temos a sutil garantia de que elas não duram para sempre. Ou porque percebemos que nosso controle sobre tudo à nossa volta é muito mais limitado do que gostaríamos de admitir, ou porque, à força, somos instados a perceber o nosso universo particular de outra forma, o fato é que, um dia, alguma coisa se parte dentro de nós.

No final do ano, tirei a bússola de dentro da caixinha de plástico e a coloquei em cima da minha mesa, para me lembrar, ainda que remotamente, que a bússola aponta o caminho, mas quem caminha somos nós.

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Esta crônica foi publicada também no blog Gato Branco em Fuligem de Carvão, parceiro do Lupa Cultural.

domingo, 3 de março de 2013

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

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Uma das principais e mais elogiadas obras contemporâneas sobre a condição humana (reduzida à busca pela sobrevivência) chegou até mim quando eu ainda estava cursando o 2º ano do Ensino Médio. Ensaio sobre a cegueira (1995), romance de ficção escrito pelo português nobelizado José Saramago, era leitura paradidática obrigatória naquela época, quase às portas do vestibular – e por aí já podemos ter uma vaga ideia sobre como aquela literatura visceral, nua e crua, foi recebida por alunos mais preocupados em decorar fórmulas de Física do que em refletir sobre as questões existenciais da nossa sociedade.

 

Como eu me irritava facilmente com toda aquela educação pragmática do pré-vestibular, que prepara os estudantes não para a vida, mas para a competição desmedida e a memorização de conteúdos insignificantes, mergulhei de cabeça naquele livro do qual eu nem mesmo sabia o que esperar. Apenas me agradava qualquer coisa distante da ideia de ter um professor à minha frente tentando fazer com que briófitas e pteridófitas soassem como um assunto muitíssimo interessante, por meio de piadas bestas e falsa empolgação. No final das contas, ao entrar no universo de Saramago, o que eu encontrei naquelas páginas foi muito mais do que um cano de escape: foi a constatação precoce de que o mundo é um lugar potencialmente horrível; no tempo de um simples piscar de olhos, ele pode ir da rotina alegre ao desespero absoluto. E descobri que há alguma beleza sutil nisso.


Sinopse: Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma "treva branca" que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas. O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti.


Quem conhece alguma coisa sobre José Saramago, ou mesmo quem já leu algum de seus livros, sabe que o estilo do autor é um espetáculo fascinante à parte, algo que desafia a paciência e a concentração de qualquer leitor, mesmo os mais experientes. Lançando mão apenas de vírgulas e pontos finais, o texto deste português, visto de longe, é um denso e complexo emaranhado de palavras que vão se conectando meio que forçosamente, tecendo às vezes parágrafos de várias páginas, numa das mais originais construções textuais de toda a história da Literatura. (Coincidentemente ou não, outro escritor que revoluciona o modo de escrever livros é português e "rival" de Saramago, António Lobo Antunes.)

 

Passada a inquietude fundamental com o texto excêntrico de Saramago – algo que, se ocorrer, será apenas para além da metade do livro – o leitor começa a perceber uma história que é absurda e assustadora justamente pelo fato de ser tão banal: num belo dia de sol, aparentemente do nada, todas as pessoas de uma cidade normal começam a ficar cegas, uma após a outra, em rápida sucessão. A princípio, apesar do susto e da incerteza que assola as vítimas, as pessoas agem com civilidade e educação; mas, em questão de horas, o verniz dos bons-modos começa a descascar e a humanidade começa a mostrar sua face mais autêntica e mais próxima da barbárie. Isolados em uma instalação do governo que passa a funcionar como depositório de cegos, todos os que são acometidos pela "doença" ficam em quarentena, vigiados pelas autoridades sob condições estritamente rígidas. Ao cabo de algumas semanas, a situação neste lugar se torna tão insuportável – com agravantes de superlotação, falta de comida e abundância de violência – que em tudo lembra os presídios mais hediondos do Brasil.


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Cartaz norte-americano e brasileiro do filme dirigido por Fernando Meirelles, baseado no livro


Desnecessário dizer que Ensaio sobre a cegueira é um romance metafórico. Quando eu tinha 16 anos e li o livro pela primeira vez, custei a perceber isto, por alguma razão – talvez pelo fato de que eu nunca houvesse lido um romance essencialmente alegórico. No início, acreditava que os personagens da história estavam ficando cegos por algum problema oftalmológico, mesmo, e que o ponto alto da trama seria quando descobrissem o que causara a epidemia. O fato é que compreendi a metáfora da obra quando comecei a olhar ao meu redor e a me dar conta de que, de uma maneira ou de outra, todos nós somos cegos – cegos que, vendo, não veem. Somos cegos que aparentemente enxergamos os outros mas que, quando a situação aperta nosso pescoço, tendemos a olhar apenas para nosso próprio umbigo e nossos pequenos propósitos. Cegos que não enxergam a verdadeira natureza da vida em comunidade e que são reféns dos medos e das exigências dos outros. Uma cegueira branca, como a do livro, diferente da cegueira negra, fisiológica.

 

A grande mensagem que retirei da obra-prima de Saramago foi justamente esta: a de que podemos perder o controle sobre nós mesmos a qualquer hora, podemos perder nossa autonomia, podemos deixar de exercitar nosso senso crítico e nos tornar mais uma ovelha no rebanho em questão de segundos, sem que possamos nos dar conta disso. E que, quando isso acontecer, entraremos todos numa espécie de espiral descendente que nos levará à perdição, e sofreremos ao percebermos nossa própria imbecilidade. Não é um quadro que anima ninguém, mas a Literatura está cheia de exemplos de obras que causam um profundo mal-estar nas pessoas precisamente pelo fato de trazerem perspectivas reais e cruéis.

 

Ensaio sobre a cegueira não é um livro que fará você se sentir melhor, mas certamente trará alguma dose de maturidade, seja ela qual for.

 


 

Esta postagem foi escrita originalmente para o blog Gato Branco em Fuligem de Carvão, parceiro do Lupa Cultural

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sábado, 14 de abril de 2012

Graphic novel: Três sombras, de Cyril Pedrosa

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Lá estou eu, domingo à noite, sem nenhuma perspectiva de acabar satisfatoriamente o final de semana. Não estou com vontade de sair; não estou com vontade de ouvir música; não estou com vontade de ler sequer.

Então, dando uma olhada sem compromisso na coleção de livros do meu irmão, eis que acabo encontrando um volume que me desperta o interesse. Encontrar alguma coisa que me desperte o interesse no domingo à noite é algo digno de nota.

A obra chama-se Três sombras (Trois ombres, 2007), uma graphic novel roteirizada e desenhada pelo francês Cyril Pedrosa, um cara que inclusive já trabalhou nos estúdios da Disney, em filmes como Hércules e O corcunda de Notre-Dame.

Pra quem não tinha nada para fazer na hora, como eu, esse foi um achado e tanto.



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Sinopse: Joachim e seus pais levam uma vida tranquila em uma pequena casa no campo. A aparição de três sombras no alto de uma colina, no entanto, corrói a harmonia da vida em família e enche os pais de dúvidas. Seriam viajantes? Por que estão rondando a casa? A cada tentativa de aproximação, as figuras misteriosas desaparecem. Logo, eles percebem que as sombras estão ali para buscar Joachim.

Recusando-se a aceitar esse fato, o pai foge com o filho em uma viagem febril e desesperada, sempre com as sinistras sombras em seu encalço. Joachim deixa assim seu mundo idílico pela primeira vez para viajar por terras hostis em um navio precário, onde conhecerá um mundo cercado de adultos trapaceiros e imorais.

Romance de aventura com contornos épicos, Três sombras explora sutilmente questões de ordem filosófica e moral.

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Embora admire muitíssimo o trabalho nas graphic novels, eu não tenho o costume de lê-las. Na verdade, são poucos os álbuns que realmente me chamam a atenção. Admiro mais o aspecto técnico deles: a arte em si, a dedicação do autor em montar quadro por quadro, o fio da narrativa que perpassa todas as linhas do nanquim. Mas encontrar uma graphic novel com uma história que me faça lê-la de cabo a rabo é coisa muito rara.

Com Três sombras foi diferente. Dei uma folheada rápida no volume, vi o desenho cativante, vi algumas cenas que me chamaram a atenção e – finalmente – li a sinopse que me deixou curioso. Cheguei à página final em nada mais que dois dias, antes de devolver o livro pesado à prateleira do meu irmão.

Logo nas primeiras páginas, somos cativados pelos personagens que vão sendo apresentados. Eles se resumem basicamente a Joachim e seus pais, embora depois vá aparecendo uma dezena de personagens secundários, tão interessantes quanto os protagonistas. É o caso da velha Suzette, cuja aparição é rápida, porém precisa; do sinistro Manfred, traficante de escravos, e do estranho velhinho que faz uma oferta bizarra ao pai de Joachim. São esses personagens secundários que fazem todo o diferencial na história.

Quando começamos a lê-la, não demora muito para percebemos que a obra não trata necessariamente de algo tangível, mas de uma metáfora, uma alegoria, cuidadosamente talhada por Pedrosa. A morte no formato das três sombras e outros aspectos do enredo deixam esse viés alegórico muito claro. No mais, de uma maneira geral, o autor segue a linha pós-moderna de arte, na qual o verdadeiro significado das metáforas é construído pelo próprio leitor.

Adorei entrar em contato com essa graphic novel. Portanto, fica a minha dica: uma bela obra de arte. Que pode ser lida em um dia mesmo, no máximo dois. Experimentem.

sábado, 24 de março de 2012

Graphic novel: Fantasmópolis, de Doug TenNapel

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Hoje aconteceu uma coisa inédita: li um livro inteiro em pé. Tudo bem, pode não parecer grande coisa quando se trata na verdade de uma graphic-novel com poucos diálogos, mas o fato é que, mesmo no desconforto de estar escorado em uma coluna e recebendo um jato gélido do ar-condicionado na cara, li de ponta a ponta o mais novo álbum da editora Ática.

Estamos falando de Fantasmópolis (Ghostopolis, 2011), escrito e desenhado por um artista bem conceituado e conhecido nos Estados Unidos: Doug TenNapel. Os nintendistas dos anos 1990 certamente já estão familiarizados com uma das suas principais criações, que virou ícone nerd no mundo dos gamers: a minhoca esquisita Earthworm Jim, protagonista de um dos jogos mais singulares e difíceis da Nintendo. Lembram?

Minha proeza de hoje se deu totalmente por acaso, assim como todas as outras poucas proezas que já consegui realizar na vida. Eu estava passeando pela minha livraria predileta com meu irmão, quando, de repente, ele me convidou para dar uma olhada na seção dos quadrinhos. Fomos. Cheguei lá, puxei um volume a esmo da estante e, sem sequer olhar o título, comecei a lê-lo: não deu outra. Quando eu me dei conta de que já estava na metade do álbum, decidi que não tinha outra opção que não fosse terminá-lo ali mesmo.



O enredo de Fantasmópolis é do tipo comum que, se for bem trabalhado, pode arvorar uma história em grande parte original e dotada de vida própria. Sei que parece algo contraditório, mas é o mesmo tipo de história encontrada em, por exemplo, A história sem fim: um argumento comum que recebeu um trato extremamente cuidadoso e que, por isso, agora goza de originalidade. (Só para constar, esse é o único paralelo que traço entre a obra de Michael Ende e a graphic-novel de TenNapel. De resto, vale frisar, as duas coisas nada têm em comum.)

Fantasmópolis possui um traço artístico bem esparso e livre de detalhes, assim como boa parte das graphic-novels modernas. Embora seja simples, seu desenho não é nem um pouco ruim, e é a própria simplicidade que transmite para o leitor o caráter leve, ágil e bem-humorado da obra. Foi essa agilidade de ritmo que me permitiu ler o álbum em pouco mais de uma hora, e nesse aspecto há um lado bom e outro ruim. O lado bom é que a economia de palavras e quadros dá à obra em questão uma espécie de "personalidade" própria, enxuta e direta. O lado ruim dessa frugalidade, por sua vez, pode ser percebido em passagens que mereciam (e não tiveram) um melhor cuidado na narrativa, um compasso mais lento e detalhado.

Ser objetivo e dar poucas explicações é um traço característico de TenNapel – isso a maioria das pessoas que acompanham o seu trabalho sabe. Às vezes (e isso vale para Fantasmópolis), podemos até preencher lacunas com a nossa imaginação particular, explicando coisas e detalhando cenas que o autor se absteve de descrever. No entanto, apesar desse exercício agradável de literatura, diversas vezes percebi no álbum uma agilidade e uma rapidez que não combinavam com o "clima" da cena. Essas passagens (penso eu, na minha incipiente experiência com graphic-novels) demandam um trabalho atento e cuidadoso que o seu autor não lhes conferiu.



Mesmo com essa leve escorregada, Doug TenNapel consegue criar uma história divertida que prende a atenção, apesar dos muitos clichês presentes ao longo de boa parte do quadrinho. Imagino que a presença desses clichês é até proposital, porque o leitor nota um quê de brincadeira nessas abordagens, como se o autor procurasse entreter os leitores com mais esse elemento, também. De qualquer modo, emerge das páginas do álbum uma espécie de garra que prende o leitor, e, assim, ele vira folha depois de folha sem se dar conta do tempo. Foi o que aconteceu comigo.

Sem dúvida, uma das características mais marcantes e curiosas de Fantasmópolis é a presença maciça do fator surreal, que enche as páginas do início até o fim. Certamente é esse fator que movimenta toda a obra e faz com que ela se torne tão convidativa ao leitor, além de ser o marco de originalidade que livra o quadrinho de cair na mesmice das histórias de fantasia. Todos os personagens, embora pouco aprofundados subjetivamente, são interessantes e possuem uma atração particular, cada qual a seu modo ligeiro.

Em suma, se você procura uma graphic-novel leve e desinteressada, Fantasmópolis pode ser uma boa sugestão. É possível gastar menos de uma hora e meia lendo esse álbum, que, além de bem-humorado, é divertido e imaginativo, narrado em linguagem ágil e econômica – bem aos moldes dos quadrinhos modernos.

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quarta-feira, 14 de março de 2012

A poesia serena de Alberto Caeiro

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Havia uma espécie de certeza antecipada quando tive nas mãos, pela primeira vez, o livro que reúne todos os poemas escritos pelo heterônimo mais bucólico, simpático e fleumático inventado pelo português Fernando Pessoa. Antes mesmo de terminar a leitura da primeira estrofe do poema que abre a coletânea, tive a certeza de que aquele seria um livro para sempre meu. Até hoje, depois de tantos anos, Alberto Caeiro é o autor que ocupa minha cabeceira; suas frases, seus versos, sempre de uma serenidade ímpar, são capazes de amansar qualquer estado de espírito.

Li os Poemas Completos (que foram escritos entre 1910 e 1935) com a sensação nítida de que cada frase me despertava para uma nova perspectiva de vida. Uma nova filosofia nascia ali, diante de mim, e eu a assimilava como quem, isolado no deserto, encontra um poço cheio de água potável: com avidez, me deliciando com cada palavra. Mas o mais curioso é que as idéias e o discurso de Caeiro não eram de todo novidades para mim: seu desprendimento, sua simplicidade, seu minimalismo já estavam incutidos naquilo que eu imagino ser minha personalidade. Desse modo, naquela época, identifiquei meus sentimentos e pude vê-los verbalizados em poesia. Nada melhor, ainda mais quando estamos falando da qualidade de um Fernando Pessoa.


Para quem ainda não sabe, o poeta Fernando Pessoa, num súbito lampejo de compreensão, entendeu que sua alma era dotada de pontos de vista e estilos tão distintos que não seria possível assinar todos os seus escritos sob o mesmo nome. Além de "Fernando Pessoa" (que, desnecessário dizer, era ele mesmo), o autor criou uma dezena de heterônimos que correspondiam a personagens diferentes, ou, antes, a autores diferentes. De todos esses autores distintos, sobreviveram ao curso do tempo apenas três, que são a tríade mais famosa e mais rapidamente associada ao nome do poeta português: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Há também o existencialista Bernardo Soares, mas este, infelizmente, deve seu reconhecimento pelo público a apenas uma única obra em prosa: O livro do desassossego.

Vale lembrar que heterônimo não é o mesmo que pseudônimo. No segundo caso, o autor apenas esconde seu nome verdadeiro e publica outro no lugar, como um nome substituto artístico pelo qual ele pretende ser reconhecido. No heterônimo, o artista cria autores diferentes dele mesmo, com biografia e obra distintas da sua própria. Fernando Pessoa mesmo costumava dizer que Alberto Caeiro era seu "mestre", e que toda a sua obra partia de um ou outro pressuposto do famoso guardador de rebanhos. Às vezes eu fico pensando que psiquiatras e outros estudiosos científicos não vêem nisso senão um belo traço de esquizofrenia.


Não precisei chegar sequer na metade dos Poemas completos para perceber que eu já adorava o livro e que o tinha como a mais bela coletânea de estrofes em língua portuguesa lida até então. Quanta poesia inteligente, quantos versos claros e serenos! Se existe uma coisa que é comum a todos os heterônimos de Fernando Pessoa (e isso só pode ser explicado como um traço intrínseco do autor), é que sua poesia não é do tipo que turva as águas para sugerir profundidade. Não consigo encontrar outra característica mais louvável em um poeta: clareza e sensibilidade. Caeiro escreve com uma calma tão evidente, com uma serenidade tão absoluta, que nada poderia advir daí senão os versos mais interessantes e cristalinos possíveis.

Poemas completos é recheado de frases breves extremamente carregadas de sentido. É o caso de, por exemplo, "Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir" ou "Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a natureza os pôs". Simples, direto e de uma beleza inquestionável, que abre mão dos mais rocambolescos recursos para se fazer entender. Antes de tudo, apela para a humanidade do leitor, e só assim ela almeja fazer sentido. É uma poesia humanista, por que não?


Nunca tive prazer ou necessidade de riscar um livro, sublinhando passagens importantes ou fazendo anotações nas margens das páginas; no entanto, aqui eu tive que deixar de lado essa tradição. Risquei estrofes, sublinhei versos, pus asteriscos em poemas inteiros e circulei vários trechos que julguei como portadores de uma essência que não podia ser perdida, e sim lembrada para sempre. Fiz isso sem o menor constrangimento. O entusiasmo ao marcar essas passagens foi tão grande que, mesmo hoje, sou capaz de citar estrofes inteiras de cor. A minha preferida é:

"Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,

Quer para fazer o bem, quer para fazer o mal.

A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.

Querer mais é perder isso, e ser infeliz." (p. 71) 

Poemas completos de Alberto Caeiro é um livro que significa muito para mim. Na época em que o li, lembro que ele serviu como uma espécie de muleta, na qual eu me apoiava e até mesmo me baseava, fazendo daqueles versos as palavras que eu queria dizer cotidianamente, para todos, alardeando minha nova atitude perante a vida. Esses livros – que realmente nos tocam e nos mudam, estilhaçando-nos com sua verdade óbvia – são raros. Quando encontrados, devem ser preservados, como se fossem uma parte de nossa própria anatomia – coisa que, apenas por pouco, não são de fato.

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quinta-feira, 8 de março de 2012

7 mulheres de atitude da literatura

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Nascer mulher ainda é sinônimo de resistência. Aprender a usar salto alto, disfarçar o choro com maquiagem e ainda ser doce quando o dia está amargo pode parecer "coisa de mulherzinha", mas atitudes como essas só enaltecem a força do sexo feminino. Sem diminuir o potencial masculino, esta publicação não objetiva a comparação e a sem propósito e já conhecida "Guerra dos Sexos".

Na verdade, a ideia desta postagem é lembrar o Dia Internacional da Mulher, comemorado hoje, 8 de março de 2012. A data foi escolhida em homenagem as 130 operárias de uma fábrica de tecidos em Nova Iorque, que entraram em greve para reivindicar melhores condições de trabalho, mas, que em repressão a manifestação, foram trancadas e queimadas no local.
É verdade que hoje as mulheres alcançaram muitos dos direitos que em outros tempos eram de exclusividade dos homens, porém, no que se refere ao respeito, ainda há muito o que fazer.

No mundo cultural, seja nos livros, no cinema ou no teatro, a imagem feminina está muitas vezes relacionada à donzela, mas erra quem associa o heroísmo romântico à fragilidade. Pensando nisto, não compramos um bolo para celebrar o dia, mas preparamos uma lista das personagens mais fortes da literatura.


1 - Elizabeth Bennet

A protagonista da autora Jane Austen, no livro "Orgulho e Preconceito", vai de encontro à personalidade das mulheres da época, enquanto a maioria "sonha", ou melhor, almeja um casamento, mesmo que por barganha. Elizabeth é uma heroínas as avessas, mas nem tanto. Lizzy, apelido da personagem na obra, não tem uma beleza cativante (não pensemos aqui no filme e nem em Keira Knightley, que interpretou a segunda filha dos bennet para o cinema). Sem se encaixar no estereótipo da mulher ideal, Elizabeth questiona a atitude das mulheres do seu tempo, uma vez que estas precisam cozinhar, tocar piano com destreza e ainda bordar para serem consideradas damas.

2 - Lisbeth Salander

É impossível ignorar Lisbeth dessa lista. A heroína do sueco Stieg Larsson, responsável pela Trilogia Millenium, que está dando o que falar no cinema. A obra de Larsson já teve duas adaptações, a sueca, com Noomi Rapace na pele da heroína "pós punk" e Rooney Mara, que parece ter lido o livro de Larsson muitas vezes para dar essência a fria e vingativa Lisbeth.


3 - Lolita


"Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita." O trecho da "polêmica" obra do russo Vladimir Nabokov explica, em parte, as razões por Lolita estar listada aqui. 12 anos, sensual — com a face mais pura que a sensualidade pode ter e inocente de uma forma perversa, Lolita representa aquela menina-mulher que pode levar homens como o seu padrasto, Humbert, à angustiante insadidade de uma paixão sem freios.

4- Capitu

Porque quando se fala de literatura brasileira e mulher, eu não lembro de Aurélia, muito menos Iracema, mas estala em minha cabeça o nome da menina de olhos de "cigana obliqua e dissimulada", Maria Capitolina Santiago, Capitu, personagem do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. Traindo ou não Bentinho, Capitu era uma mulher forte, ou é se pensarmos que um livro é sempre presente. À frente do seu tempo e com desejos próprios, a heroína de Assis nasceu com a persuasão nos olhos. A nossa representante cheia de atitude da literatura nacional é a fusão das várias faces que uma mulher pode ter (e acredite, são muitas).


5 - Úrsula Iguaran

Como fã de carteirinha de Gabriel Garcia Marquez, não poderia deixar fora desta seleção alguma das personagens femininas de suas obras. A roleta russa apontou para Úrsula Iguaran, a matriarca da família Buendía, em Cem Anos de Solidão, livro pelo qual o escritor colombiano ganhou o prênio Nobel de literatura. A escolha de Úrsula serve para mostrar que não é preciso ser a frente do seu tempo, como a senhorita Bennet, ou boa de briga como Lisbeth Salander. Úrsula Iguaran é forte como muitas mulheres em ações cotidianas: cuidando do lar, vigiando as crianças, mantendo a paciência com as lourucas de seu marido, Aureliano Buendia, e dando um jeito aqui e ali de ajudar na renda da família.

6- Anna Karenina


Casada, uma mãe que filho nenhum pode colocar defeito, Anna é mulher que vive no mais alto glamour da sociedade e não teria do que reclamar de sua vida, não fosse seu casamento por conveniência, assim como muitos outros da época. De certo a heroína de Tolstoi não contava que se apaixonaria por outra pessoa e abriria mão de tudo para viver ao lado do seu amante. Mais do que uma história de adultério, o livro é uma crítica à aristocracia russa czarista e uma demonstração da força que uma mulher pode ter e o que ela pode deixar para trás quando o amor enaltece a razão.





7 - Elizabeth Gilbert


Elizabeth, de Comer, Rezar e Amar, completou 30 anos e percebeu que tinha tudo e ao mesmo tempo não tinha coisa alguma na vida. A senhoria Gilbert é o retrato de uma mulher moderna, ambiciosa e com uma carreira de sucesso, mas, por outro lado sem a desejada e utópica felicidade. Por conta disto, decide por fim em seu casamento e se envolve com um ator bem mais jovem, mas vê que também não dará certo e resolve fazer as coisas que sempre quis. E no meio disto faz amigos, aprende italiano, aumenta uns quilinhos (sem culpa), aprende a meditar, ajuda novos conhecidos e faz um novo e tranquilo amor.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A garota das laranjas, de Jostein Gaarder

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Dentre todos os livros que ganhei de presente na vida (pelas mais diversas ocasiões), encontra-se na minha estante A garota das laranjas, dado pela minha namorada no começo do nosso relacionamento. Por conta própria, eu  digo que seria bem difícil ir atrás desse livro, mas, depois que o li, tenho de agradecer pela oportunidade de ele ter vindo parar nas minhas mãos.

A Garota das Laranjas, (Appelsinpiken, 2005) foi escrito por um dos mais populares autores contemporâneos: estamos falando de Jostein Gaarder, filósofo norueguês conhecidíssimo por seu célebre O Mundo de Sofia, que lhe deu projeção internacional como romancista no começo dos anos 1990.

Extremamente cativante. Essa talvez seja a expressão mais adequada para que eu possa me referir a este livro tão simples e, por isso mesmo, tão gostoso. Gaarder acertou a mão quando escreveu A Garota das Laranjas, conseguindo, logo nas primeiras páginas, captar a atenção do leitor da maneira mais agradável possível – inclusive ao falar de assuntos relativamente delicados, como morte e o vazio que um marido deixa atrás de si, mesmo quando ele é substituído por outro homem.

A confrontação com a morte, aliás, é um dos temas mais presentes no livro. Isso para não dizer que ele está manifesto praticamente desde a primeira até a última página; afinal de contas, quem escreve a maior parte da história é um pai que está à beira da morte e sabe disso. Por essa razão, ao dirigir-se ao filho maduro com quem nunca pôde conversar, o pai procura incutir-lhe divagações filosóficas que dizem respeito à condição do Homem no mundo.




Mas o objetivo geral da carta que o pai escreve a seu filho Georg não é, necessariamente, apenas de cunho filosófico. O que Jan Olav de fato deseja é contar ao seu herdeiro a sua relação de adolescente com a "garota das laranjas", lá pela ida década de 1970. E eu diria que é nesse relato da história de amor entre Olav e a garota das laranjas que o livro mais cativa. O que me agradou bastante foi ler, sobretudo, uma história de amor sem exageros, perfeitamente convincente, mas que nem por isso deixa de ser bonita, reflexiva, singela e calorosa.

Muitas pessoas julgam erroneamente A Garota das Laranjas pela capa, e ela de fato faz crer que o livro seja infantil, ou, no mínimo, muito infanto-juvenil. Tudo bem, a história diverte leitores de todas as idades, mas, como eu disse em um tópico de discussão do Orkut, a ingenuidade e a inocência do livro são apenas aparentes. Ele é recheado de sugestões que ficam soltas no ar, e que de certo modo são interpretadas de uma maneira peculiar por aqueles leitores não tão novos.

Me sinto inclinado a dizer que este é um romance muito maduro, muito "adulto", de certa forma. Existem certas coisas nas entrelinhas (certas reflexões, certos detalhes) que escapam a um olhar menos preparado e – vamos dizer assim – menos treinado pelo tempo. De qualquer forma, essa temática de entrelinhas foi uma das coisas que mais me fizeram gostar do livro; garante, acima de tudo, que Gaarder se dirige de diferentes formas a leitores de diferentes idades.

Com o estilo característico de Jostein Gaarder, leve e fluido, a história traz um charme irresistível. Estamos diante de um "conto de fadas moderno", plausível, sem apelos fantasiosos.

Por fim, resta dizer que A Garota das Laranjas superou fácil O Mundo de Sofia, que era o único livro de Gaarder que eu havia lido até então. Não que o livro mais famoso do autor seja ruim ou vazio, longe disso. Apenas não me cativou tanto quanto o que li nesse feriado. O Mundo de Sofia me pareceu algo muito didático, uma obra que está mais para manual do que para romance propriamente dito. Não é à toa que o livro será usado como "apostila de estudo" em algumas escolas do Brasil, com o advento da disciplina Filosofia na grade curricular.

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Esta e outras resenhas você encontra também no blog Gato Branco em Fuligem de Carvão. Para visitá-lo, clique aqui. :)

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Autores bons e desconhecidos

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Se você pertence à laia dos leitores que não se contentam apenas com a lista de mais vendidos que a VEJA ou a Época alardeiam em suas últimas páginas, este é um tópico que provavelmente despertará a sua atenção: autores ou livros que são ótimos, mas que são desconhecidos do público (e que não entram em lista alguma de “mais vendidos”).

Você conhece algum livro ou algum autor excelente e “anônimo” desse jeito? Aposto que sim.

Não é fácil achar uma obra literária que seja boa e anônima ao mesmo tempo, pela simples e primordial razão de que tudo o que chegou às graças do público passara por um crivo muito especial que leva em consideração o gosto coletivo e unânime. O gosto individual - ou seja, o meu, o seu e o de cada um de nós, isoladamente - não é levado em conta nas estatísticas de mercado, de modo que, por mais que você ache Howard Jacobson um autor genial, jamais verá um livro dele publicado no Brasil - a não ser que algum prêmio estrangeiro legitime seu trabalho.


Eu gostaria de começar falando sobre um "achado" que veio cair em minhas mãos recentemente. Trata-se de um escritor: o escritor indo-americano Amitav Ghosh, que, infelizmente, só possui quatro romances publicados aqui no Brasil, sendo que um deles (O Cromossomo Calcutá) está esgotado há quase dez anos. Os outros três (O Palácio de Espelho, Maré Voraz e Mar de Papoulas) saíram pela ótima editora Alfaguara. Se você fala inglês fluentemente e conhece esse idioma como a palma de sua mão, considere-se um felizardo, porque assim poderá ler os vários romances de Ghosh no original, e de dezenas de outros autores interessantes que não deram ainda as suas caras por essas bandas.

Amitav Ghosh é um autor mundialmente reconhecido e, inclusive, chegou a ser comparado pelo The Observer a Dickens, Tolstói e Dumas na mesma frase! Seus livros geralmente abordam questões políticas, ambientais e sociais ao mesmo tempo – e o que torna tudo isso atraente é o fato de que Ghosh consegue imergir esses assuntos no meio de uma história incrivelmente cativante e cheia de aventuras e suspenses, dando margem até para a poesia e para o amor. Maré Voraz é um exemplo de um livro com essas qualidades de que estou falando. É comum, em seus livros, Ghosh misturar elementos verídicos com elementos fictícios, criando uma história que ganha em verossimilhança por conta da citação de fatos reais ao longo do texto.


Outro sujeito da literatura que não é muito conhecido por nós, brasileiros, mas que mesmo assim qualifico como sendo “ótimo” é o norte-americano David Benioff, autor do muito divertido Cidade de Ladrões – livro que, inclusive, mereceu uma postagem aqui no Gato Branco.

Apenas o romance supracitado de Benioff possui tradução para o português, de modo que podemos ter somente uma atevisão do que é o trabalho dele. Aliás, nem tanto: Benioff escreve muitos roteiros para o cinema, tendo já assinado projetos famosos como Wolverine – Origens e Tróia. É através desses filmes que também podemos conhecer um pouco mais do seu processo criativo. Mas na literatura… muito pouco, por enquanto. Gosto de pensar que, de qualquer forma, por algum desígnio do destino, os trabalhos desses escritores possam chegar a pessoas que se interessam pelo tema que escrevem, mas que ainda não tiveram conhecimento da sua existência.

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E você, por acaso, tem alguma dica de um autor (ou de um livro) desconhecido, mas excelente?

Deixe um comentário. :)

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Contos clássicos de vampiro!

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Agora há pouco, mergulhado na noite silenciosa e melancólica de hoje, acabei a leitura do livro Contos clássicos de vampiro, lançado nas livrarias do Brasil pela editora Hedra. O livro – como o próprio título já sugere – é uma coletânea de histórias clássicas sobre vampiros, textos que vão desde o inglês Lord Byron até M. R. James, mestre na arte de contar histórias de horror. Se não estou equivocado, é certo que nenhum conto data de além do século XIX. São clássicos mesmo, no estrito sentido da palavra.


Depois de ter lido dois contos do livro na própria livraria – Fragmento de um romance e Porque o sangue é vida – tomei vergonha na cara e comprei a coletânea. Já tinha certeza de que não ia me decepcionar. Quando eu encontro um livro por acaso numa prateleira, começo a lê-lo e ele simplesmente não sai das minhas mãos, posso garantir a mim mesmo que não vou perder dinheiro se comprá-lo.

E não me arrependi mesmo. Todas as histórias são perfeitas no objetivo de entreter o leitor. Por isso, suponho, são clássicas: se passaram centenas de anos entretendo leitores de incontáveis gerações, não há motivos para não continuar publicando-as. E acho mesmo necessária uma coletânea desse tipo, porque, depois de Crepúsculo (cujo filme adorei) a banalização acerca do tema "vampiro" ficou beirando o insuportável. Parece que centenas de escritores que não conseguiram a fama de outro modo estão pegando carona em Stephanie Meyer - autora que, por sinal, é na maioria das vezes injustamente criticada*.




Adoro a linguagem utilizada nesses textos que datam do século XIX e começozinho do século XX. Eu diria que é uma linguagem que consegue ser precisa e floreada ao mesmo tempo, fechada e aberta, transgressora e conservadora, sem nunca perder a elegância. Uma boa literatura depende essencialmente de como é escrita, e garanto que, nessa questão estética da linguagem, as obras do passado superam muitas das atuais.

De todos os contos do livro, certamente o mais profundo e interessante de todos – embora todos sejam interessantes – é A morta amorosa, do genial Théophile Gautier. A posição intermediária entre o sagrado e o profano que o pobre pároco Romualdo se situa suscita inúmeras reflexões dignas de nota, muito bem escritas, aliás, além de desenhar a imagem do vampiro sob outro prisma, não-convencional.

Essa coletânea vem dotada de um grande prefácio e um grande posfácio. O primeiro é uma introdução escrita por Alexander da Silva, que traça todo o perfil histórico do vampiro, desde as suas origens inicialmente eslavas até o papel que a figura folclórica desempenha no cinema. Vale muito a pena ser lido. O segundo, posfácio, é um apêndice generoso que contém poemas de grandes escritores – Goethe incluído – acerca do tema.

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* Meyer é comumente criticada pelas inovações que apresentou no universo dos vampiros, como a característica questionável do personagem Edward Cullen de brilhar ao sol. No entanto, um olhar mais cuidadoso sobre a história da literatura vampiresca indica que vários autores de diferentes épocas modificaram a lenda clássica a seu bel-prazer, consolidando características que, naquele tempo, não eram bem-vindas, mas que hoje são tidas como imutáveis. A saga Crepúsculo ainda é muito recente na história da literatura para que se possa aferir sua verdadeira influência.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

5 livros lidos em 2011 e que você gostará de ler em 2012

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Quem acompanha o meu blog particular, o Gato Branco em Fuligem de Carvão, sabe que eu costumo listar no início de todo ano as leituras que realmente valeram a pena nos doze meses que se passaram. É uma prática que se consolidou lá por acaso, e, embora não seja de todo original, tento mantê-la como uma tradição divertida e reflexiva.

Como dá para imaginar, dentre tantos livros lidos em um ano, é difícil eleger e recomendar apenas cinco. Sem dúvida, um número muito maior deveria ser levado em conta, mas penso que isso significaria formular uma lista mais complexa para, no final das contas, englobar a maioria dos títulos lidos naquele ano. Sendo assim, como a idéia é ser puramente seletivo, convém eleger mesmo apenas a fina flor das obras. Tarefa difícil, como muitos podem imaginar.

Dessa maneira, compartilho aqui no Lupa Cultural as cinco obras que li em 2011 e que recomendo sem restrições a quem se interessar pelas suas premissas. Para ler a resenha completa de cada uma no Gato Branco, basta clicar sobre as capas dos livros. Para visitar o blog e ler as últimas novidades que postei por lá, basta clicar aqui.

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Admirável Mundo Novo | Aldous Huxley

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Definitivamente, não é por acaso que este livro figura como um dos clássicos mais icônicos de todos os tempos. A obra mais famosa do britânico Aldous Huxley tem qualidade, sim, e não é pouca.

Em um futuro bastante longínquo, a sociedade humana se tornou essencialmente asséptica e funcional: sem a constituição de famílias, a população do mundo é dividida em castas específicas, que variam de acordo com a função que o sujeito possui perante o meio coletivo. Com uma liberdade total – porém questionável – os Alfa usufruem do planeta que os Delta e os Ípsilon são obrigados a manter, sem que com isso se sintam oprimidos pelo sistema; pois, desde o nascimento, as pessoas são condicionadas a se adaptarem à sua classe, o que sufoca, assim, qualquer tipo de mobilidade social.

A trama começa quando Bernard Marx, um Alfa, se sente deslocado no mundo elitizado que foi tido, desde o começo, como sua classe natural. Para complicar as coisas, ele começa a se sentir apaixonado por Lenina – o que é terminantemente proibido no Mundo Novo, uma vez que as paixões perturbam os homens e os levam a fazer coisas imprevisíveis.

Além de ter uma história rica em conflitos e possuir uma escrita impecável, Admirável mundo novo é um convite à reflexão sobre as organizações humanas e suas possíveis implicações. Recomendadíssimo, principalmente para os que gostam de um bom estudo social na literatura.

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Os devaneios do caminhante solitário | Jean-Jacques Rousseau

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Este foi, sem dúvida, um dos melhores que li em 2011. Sensível, lírico, inovador, poético e visceral, Os devaneios do caminhante solitário é o "adeus" do brilhante filósofo Rousseau. Aqui, o autor se mostra extremamente desiludido com relação à sociedade ou, melhor, aos homens de um modo geral; acredita ser vítima das manipulações de um complô destinado a torná-lo infeliz e anônimo. Assim, procura escrever estas páginas não para o público, mas para si mesmo, pelo simples prazer de escrevê-las e pelo que acredita ser um ato de desafio àqueles que o criticam.

É um livro completo, pois apresenta reflexões das mais variadas naturezas. Felicidade, verdade, mentira, paixões, lugares, nada escapa ao escrutínio de Rousseau. Uma das sensações que senti ao lê-lo foi a de paz interior, por alguma razão que não sei explicar. Acho que o livro transmite uma idéia de serenidade muito forte.

Para quem gosta de livros de reflexão filosófica leve, este é absolutamente indispensável.

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Vida roubada | Jaycee Dugard

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Raptada aos 11 anos de idade e libertada (ou melhor, resgatada) somente aos 29, Jaycee Dugard é a protagonista de uma das mais dramáticas histórias de seqüestro de todos os tempos. Suas memórias de cativeiro, retratadas no livro Vida roubada, reconstroem o cotidiano catastrófico e enfadonho que a moça foi obrigada a enfrentar durante esses árduos 18 anos em que esteve nas mãos de Phillip Garrido, sobrevivendo nos fundos de um quintal.

Mas, afinal, qual é o atrativo do livro? Ora, além de trazer uma história marcante, capaz de atrair a atenção de qualquer um, Jaycee narra sua saga com uma simplicidade e uma honestidade singulares. Sem pudores, sempre valente e pronta para contar o mais ímpio dos detalhes, a autora revela assim toda a sua conturbada relação com o homem que a raptou. Muito mais que um simples livro chocante, Vida roubada é, antes de tudo, o retrato de uma das diversas tragédias concebidas no plano das relações humanas.

Para quem gosta de histórias reais, esta é a recomendação do ano.

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Onde os homens conquistam a glória | Jon Krakauer

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Outra história impressionante e real que li neste ano foi a de Pat Tillman, escrita pelo jornalista Jon Krakauer – mesmo autor dos best-sellers Na natureza selvagem e No ar rarefeito.

Tillman era um popular jogador de futebol americano quando, em setembro de 2001, as Torres Gêmeas foram atacadas por fundamentalistas islâmicos. Impressionado pelo evento, seu espírito patriotista foi despertado, e Tillman abandonou a carreira nos campos para se dedicar às Forças Armadas, a fim de lutar contra aqueles que violaram seu país. Acabou morto por fogo-amigo em uma das mais desajeitadas operações do Exército Americano; a família de Tillman, insatisfeita com as explicações falsas dadas pelas autoridades, remexeu a história até encontrar a verdadeira causa da morte do jovem soldado.

Além de contar a história de Tillman em detalhes, Krakauer esmiúça uma das principais guerras que agitam o século XXI. Essa talvez seja a característica mais atraente do livro, visto que, por si só, a saga de Tillman não oferece grande coisa além de mostrar a incompetência de alguns batalhões do exército norte-americano e até onde o heroísmo de uma pessoa pode levá-la.

Para quem gosta de histórias reais e para quem se interessa pelos conflitos políticos/bélicos que rolam no sul da Ásia, um prato cheio!

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Lá onde os tigres se sentem em casa | Jean-Marie Blas de Roblès

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Sem dúvida, a surpresa do ano. E o último livro lido neste 2011.

Blas de Roblès nasceu na Argélia e morou em países exóticos como Tibete e Indonésia. Estabeleceu-se também no Brasil durante algum tempo, tendo lecionado nesse ínterim na Universidade de Fortaleza (Unifor) – por coincidência, a universidade em que estudo atualmente. Da experiência que teve com o Brasil, o autor escreveu Lá onde os tigres se sentem em casa, que recebeu o prêmio Médicis 2008 na França.

O livro possui uma trama intrincada que cruza diversas narrativas aparentemente paralelas. Eléazard é um jornalista francês que serve de correspondente no Maranhão, além de estar trabalhando em um manuscrito medieval que narra a vida de um jesuíta romano. Elaine, sua ex-esposa, faz parte de uma expedição em busca de fósseis raros no interior selvagem do Mato Grosso. Moema, filha adolescente do casal, vive suas aventuras noturnas no Ceará com um jovem professor e uma amiga. Nelson é um garoto aleijado que mendiga nas ruas de Fortaleza; Moreira Rocha é o governador corrupto do estado do Maranhão, culpado pela morte do pai de Nelson. E assim por diante.

O mérito do livro está em não cair nos clichês e nas armadilhas piegas dos romances que se passam no Brasil. Nada de regionalismos estereotipados, nada lugares-comuns: a obra de Roblès é, acima de tudo, um panorama sincero do nosso país, com tudo o que há de melhor, de pior e de misterioso aqui oculto.
Com um domínio visível da geografia local, Roblès usa o Brasil como pano de fundo da sua história, repleta de intelectualismo e poesia. Vale conferir, se o leitor estiver disposto a encarar as 700 páginas do volume.

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