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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Crônica: Bússola

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Posso estar bastante enganado ao dizer isso, mas, geralmente, quando nos decepcionamos com uma pessoa, ou com uma circunstância específica, saímos à procura discreta de um breve consolo capaz de manter acesas em nós a chama da confiança e aquela consciência particular sem a qual não é possível enxergar a beleza das coisas. Decepcionar-se não é senão acreditar que algo poderia ser de determinado jeito e, no final das contas, constatar que o que recebemos como resposta não correspondeu àquilo em que acreditávamos com tanta convicção.

Por isso pode-se dizer que, em um episódio decepcionante, não há culpados nem vítimas: há esperança em excesso, apenas. Uma esperança tão grande que, por vezes, pode engolir a realidade dos fatos. O desejo de que algumas pessoas continuem a nos fazer bem, pelo resto de nossas vidas, pode ser conveniente para nós na medida em que é exatamente essa confiança e essa certeza que sustentam o edifício dos nossos relacionamentos. Não acreditar que os outros nos farão bem é minar as bases desse edifício, por si só tão frágil. Se os decepcionados são as vítimas por cultivarem uma confiança enorme e se os decepcionantes são os culpados por terem traído a confiança alheia, isto é somente uma questão de perspectiva.



Na minha primeira experiência de atendimento a um paciente, constatei que nossa efêmera existência é pontilhada de pequenas decepções que, aos poucos, à força, nos ajudam a enxergar o mundo de uma maneira diferente – e, acima de tudo, nos ajudam a perceber que não temos controle sobre nada relacionado à nossa interação com as outras pessoas. A única coisa que temos sobre os outros é uma ligeira sensação de influência, que pode variar – e varia, sempre – ao longo do tempo. É essa influência exercida por nós sobre os outros que confere aos nossos relacionamentos uma tênue sugestão de controle.

Na ficha de entrada do serviço de psicologia não havia muitos detalhes: apenas um nome, Fernanda, a informação de que ela era recém-divorciada e que tinha um filho pequeno de três anos de idade, diagnosticado precocemente como hiperativo por um psiquiatra. Achei que o caso poderia ser interessante e, de alguma maneira, achei que ele poderia ajudar a formar o início de minha experiência profissional.

Quando Fernanda se sentou à minha frente, a um convite meu, ela respirou pesadamente e disse, sem rodeios: "Não sei muito bem por que estou aqui. Sempre achei que eu poderia resolver os meus conflitos pessoais de maneira particular, sozinha, sem precisar da ajuda de ninguém. Sou uma pessoa forte e sempre dei conta das minhas dificuldades. Existem muitas pessoas aqui que provavelmente precisam mais da sua ajuda do que eu." E, então, começou a chorar.

Lá fora fazia um dia claro. Lembro de ter passado pelos jardins da universidade e de ter dito a mim mesmo algo sobre como as tulipas e as orquídeas estavam vistosas e sadias em seu desabrochar atravessado pelo orvalho da manhã. Agora, ali naquela sala, naquele momento, o filho de três anos de Fernanda brincava com uma coleção de carrinhos de metal que eu havia trazido para a sala do consultório, junto com um balde cheio de dinossauros coloridos. Tudo parecia natural e, até certo ponto, tranquilo. Mas aquela mulher bonita de 36 anos de idade estava chorando na minha frente porque, naquela manhã de sol, decidiu admitir que havia se decepcionado com alguém (por acaso, com seu ex-esposo), e que decepcionar-se era um fenômeno que ela nunca, ou quase nunca, tinha experimentado.

Quando cheguei em casa, no fim do dia, me pus a procurar alguns documentos acadêmicos nas gavetas bagunçadas da minha escrivaninha. De forma absolutamente inesperada (ou assim me pareceu), encontrei uma bússola em formato de chaveiro, com o metal da presilha um pouco desgastado pelo tempo. A bússola estava no fundo da última gaveta, ao lado de um controle remoto de televisão velho. Com a bússola, dentro de uma caixinha de plástico transparente, havia um bilhete escrito à mão, em caligrafia feminina: Seu chá de bússola diário. Não esqueça. A direção da Beleza, da Justiça e da Sinceridade é apenas uma, e ela, essa direção, está debaixo do nosso nariz. Inútil procurar em outro lugar. Beijo, Gabi.

Sou capaz de passar dezenas de minutos olhando para uma bússola sem me cansar. Naquele momento, esqueci completamente o que eu estava buscando, que documentos estava garimpando, e fiquei a revirar aquele pequeno e simbólico objeto nas mãos até perceber que o que eu estava procurando nas gavetas, desde o começo, não eram os documentos, mas a bússola. E me dei conta de que eu não falava com Gabriela há mais de três anos porque tínhamos, contrariando todas as nossas expectativas, nos decepcionado um com o outro.

* * *

Na nossa última sessão de avaliação psicológica (cujo paciente era, na verdade, o filho hiperativo de três anos), Fernanda me confidenciou que se sentia melhor. Nas últimas semanas, havia pensado sobre sua circunstância, sobre suas amarguras, e disse que o principal consolo que recebera viera da constatação de que as decepções, todas, se devem ao nosso esforço desmedido de construir uma imagem fantasiosa dos outros de acordo com os nossos interesses. De um modo geral, sua aparência estava bem melhor: havia um sorriso tímido no rosto, seus cabelos, volumosos e ondulados, estavam soltos, suas mãos não se remexiam nervosamente e pude perceber, com um certo alívio, uma atenção maternal sincera e afetuosa para com o pequeno garoto.

A excessiva atividade que o filho de Fernanda apresentava, diariamente, tanto no colégio quanto em casa e na rua, poderia ser vista como uma espécie de reação funcional à insegurança da mãe e à ausência do pai, que o havia ignorado desde o divórcio com a esposa. Era uma hipótese que valia a pena ser levada em consideração, mas os nossos encontros semanais acabaram quando o semestre letivo chegou ao fim. De qualquer modo, até hoje, tenho a sensação nítida de que aprendi mais com Fernanda e seu filho do que ambos aprenderam comigo.

Se o estofo de nossas decepções continua a ser um mistério, pelo menos temos a sutil garantia de que elas não duram para sempre. Ou porque percebemos que nosso controle sobre tudo à nossa volta é muito mais limitado do que gostaríamos de admitir, ou porque, à força, somos instados a perceber o nosso universo particular de outra forma, o fato é que, um dia, alguma coisa se parte dentro de nós.

No final do ano, tirei a bússola de dentro da caixinha de plástico e a coloquei em cima da minha mesa, para me lembrar, ainda que remotamente, que a bússola aponta o caminho, mas quem caminha somos nós.

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Esta crônica foi publicada também no blog Gato Branco em Fuligem de Carvão, parceiro do Lupa Cultural.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A viagem daqueles sonhos

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Aquele frio na barriga ao te ver chegar na rodoviária, me senti uma menina de novo, apesar de seu imenso atraso devido ao trânsito e das inúmeras mensagens trocadas. Sim, o mesmo frio na barriga do nosso primeiro beijo, eu nunca tinha beijado ninguém até aquele trem fantasma. Você chega e quase me beija, diz que se sentiu indo encontrar a namorada como fazia anos atrás. Ao colocar o pé no ônibus já sabia que estava indo para uma viagem totalmente louca, mas que eu sempre quis! Alias, você ainda pode me achar uma namorada, já que não teve mais nenhuma depois de mim mesmo depois de seis anos.

A lua já nasceu e por acaso está linda, você vem chegando mais perto, mas te evito. Horas e horas no engarrafamento, mais de seis horas, você tentava me beijar em cada instante, o pior é que tinha um clima danado pra isso. Quase nos perdemos, porém chegamos. Você toca violão para mim, coisa que nunca fez enquanto estávamos juntos, mesmo pedindo muito. Começa logo com a letra "Devia ter arriscado mais e até errado mais", sim eu sei que a culpa de termos terminado foi minha! Ok, não precisa cantar me olhando com essa cara.

O problema começa na hora de dormir, acabamos dormindo juntos, no mesmo quarto e na cama de casal. Risos do nada "você tá dormindo?" "não" "nem eu", um abraço, um aconchego, um beijo. Acordamos, agora você escreve nosso nome no quiosque da praia, marcou pra sempre ali nossas iniciais! Uma tarde recheada de novidades e a noite meu primeiro porre. Você trouxe vinho, pura maldade sabe que eu gosto e que não sei beber.

Duas taças e já estou trocando as pernas, mas sou a única bêbada certinha do mundo! Você pergunta o que eu tenho, fico muda, você me entope de mel e diz "tomara que você não passe mal, nem bebeu tanto". Vamos para o quarto, eu digo apenas "você não devia estar aqui comigo, devia estar com a sua namorada". Nem bêbada esqueço que tens alguém hoje em dia, não é namorada, mas é a mesma alguém há quase um ano. Eu durmo, você volta e me pergunta "você ainda gosta ao mesmo um pouquinho de mim?", eu estava bêbada mas lembro, uma resposta malcriada "O que você acha?" viro e durmo.

O dia amanhece, tenho café na cama e alguém espirrando horrores. Ainda me sinto meio tonta e você ri de mim "você ouviu cachorros latindo do nada", muitos risos e fingimos esquecer o que falei, assim como de tarde fingi que não vi sem querer a sms que você enviou. Sem querer, sabe como sou curiosa, eu vi seu celular acender de manhã, fui só conferir enquanto tomava banho se tinha visto. Constatei o que eu não queria, ela te ligou inúmeras vezes e mandou mensagens, você respondeu com um "Cheguei bem, aqui é lindo, queria você aqui comigo". Acabou comigo! Chorei quando entrei no banho, coloquei meu orgulho para dentro, se eu falasse o que vi acabaria com tudo, estava umas cinco horas de casa não valia a pena, eu sabia dela quando aceitei vir.

Você ficou com febre, mas mesmo assim foi comigo as dunas, eu sempre quis ir lá e você foi só para me agradar. Para melhorar pegamos uma chuva terrível! Dois pintos molhados em um ônibus de ar condicionado, resultado: mais febre. Te dei remédio e dormiu a tarde toda no sofá, me chamou para deitar com você, nos aninhamos e ficamos ali. Acordamos 22h não dava mais para voltar, o final de semana se estendeu por mais uma noite, dormimos no sofá mesmo. Me acordou de madrugada com beijos, já estava melhor,e depois mais um café na cama.

A difícil missão de conseguir voltar sem ter comprado as passagens. Mas, enfim, um ida para outra cidade e voltamos para capital. No ônibus eu via a estrada passando, você dormindo ao meu lado e sabia que isso ficaria para sempre na memória: violão, a lua na estrada, meu primeiro porre, a lua na praia, o mel, café da manhã na cama, meus dotes de enfermeira, corridas na chuva...

Ao pisarmos na rodoviária você dizia que de tarde iria buscar seu antialérgico, que por acaso é ao lado do seu trabalho... Onde eu sei que ela também trabalha. Eu estava agora rumo ao meu trabalho, de volta a realidade. Não me contenho, falo que vi a mensagem e você apenas responde "Se eu te disser o motivo de ter enviado isso vou ter que falar tudo que inventei para ir com você. Saiba que nunca deixei de te amar e nem nunca vou deixar".





 

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